Nádia Issufo (NI): Foi um erro o facto de Moçambique não ter criado uma comissão da verdade para discutir as crueldades da guerra civil dos 16 anos?
Boia Efraime (BE): Eu penso que sim. O que está em causa é revisitar os erros cometidos no passado, num processo em que cada um assume a culpa individual e colectiva pela guerra, pela destruição e pelas atrocidades cometidas. E penso que é possível começar a ver o outro como um ser humano, como cidadão, como alguém útil no processo de construção e consolidação de um futuro comum. A não haver isto, não se estabelece a confiança.
Eu trabalhei com crianças-soldado. Não houve, por exemplo, o reconhecimento das atrocidades cometidas na guerra e das responsabilidades individuais e colectivas pelo que aconteceu. Houve uma tentativa de acusar o regime do Apartheid na África do Sul, o regime socialista na União Soviética e na RDA (ex-República Democrática da Alemanha), mas não houve um reconhecimento de que isto foi feito em primeira pessoa por nós moçambicanos.
NI: E qual é a consequência desta situação não abordada?
BE: Penso que se continua a ver o outro como como um inimigo. É disseminado o pensamento de que a destruição do outro poderia ser a solução dos conflitos que temos em Moçambique. Isso nos mais variados níveis: psíquico, político, material. Esse cenário leva à situação que estamos agora a evidenciar.
NI: Será que a aposta da RENAMO em símbolos bélicos, com o regresso do seu líder Afonso Dhlakama à base em Gorongosa, foi como brincar com fogo num país que ainda não ultrapassou os traumas de guerra?
BE: Penso que sim. Se invertêssemos a equação e colocássemos a FRELIMO no lugar da RENAMO, possivelmente, teríamos o mesmo resultado. A FRELIMO não tem confiança na RENAMO e vice-versa. E penso que esteve sempre presente a utilização do recurso da pressão militar. Se a RENAMO teve algum protagonismo na história moçambicana é porque manteve sempre o seu exército. Se não tivesse um exército, não seria vista pelo Estado como alguém que deve ser ouvido. Isso quer dizer que a Constituição do país passa pela integração de todos os moçambicanos e não pela partidarização das forças armadas, da polícia e dos mecanismos de distribuição de riqueza.
NI: Como o trauma dos 16 anos de guerra civil se manifesta numa situação de conflito como a que Moçambique vive actualmente?
BE: Uma pessoa do Parlamento dizia-me que muitos debates políticos no próprio Parlamento eram de certa maneira irracionais, porque nas bancadas da FRELIMO e da RENAMO estavam presentes pessoas que, durante a guerra, combateram em lados diferentes e foram responsáveis por actos militares que levaram à morte de familiares de deputados de outra bancada. Vinha-lhe ao de cima sentimentos de raiva, confusão e agressão, porque, para ela, aquelas pessoas continuavam a ser responsáveis pelo que aconteceu.
NI: Acha que a sociedade moçambicana e o Governo tomaram ou tomam em conta a questão do trauma?
BE: Não. Pretendeu-se fazer uma tábua rasa, fazer de conta que o conflito não existiu e que não houve responsáveis. No fim do conflito, não houve um reconhecimento da existência de crianças-soldado, não houve um processo oficial de desmobilização dessas crianças. Houve tentativas de reintegrá-las no exército, mas por não se querer aceitar que elas tinham combatido como soldados, houve um processo de continuar a negar a responsabilidade individual e colectiva do que aconteceu no passado. De certa maneira, essa responsabilidade é agora virada para os actores políticos, numa tentativa de demonização do outro.
Escute a entrevista em: http://www.dw.de/autoridades-de-moçambique-tornaram-invisíveis-os-traumas-de-guerra/a-17203529
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