"Filho, vai para a escola aprender a vencer sem ter razão", disse a mãe de um famoso escritor africano no tempo colonial. O conselho continua atual.
terça-feira, 11 de setembro de 2012
O que é um sapato?
Andar descalço em África no tempo colonial era associado a inferioridade social. Pode-se considerar até que o sistema de castas invisível instituído era basicamente determinado, numa primeira fase, por duas condições: os que dominavam tinham os pés cobertos, e os dominados não.
Na literatura, principalmente a africana, esta situação é frequentemente repescada. No romance "As visitas do Dr. Valdez", de João Paulo Borges Coelho, um dos personagens, negro moçambicano, diz: "Jeremias lhe disse que é humilhante andar descalço". No livro de Pepetela "A sul. O sombreiro" esta simbologia é também representada, mas aqui o escritor apresenta o sapato também como instrumento de tortura no pé do dominador: "As bolhas de água não lhe largavam os pés. Bolhas que depois rebentavam em dores intoleráveis. Sabia, era de andar longas caminhadas com botas altas no calor sufocante."
Como o poder maltrata não é? Outra questão lógica, mas muitas vezes ignorada por quem usa sapatos, tem a ver com o clima. Num calor de 40 graus só um masoquista quer se enfiar dentro de sapatos. Portanto, a indumentaria de cada povo tem a ver também com isso e com o conforto, uma mensagem deixada bem clara na última obra de Pepetela.
Mas o sapato como símbolo de poder é claramente explicado nesta obra: "As botas de montar eram signo da sua condição de cavaleiro e acima de todas as dores devia ficar sempre a insígnia de nobreza."
Anos depois das independências no continente, o sapato continua a ser o elemento de "separação" entre os que tem e os que não. Também é o barómetro de avaliação usado por alguns para medir o estágio de desenvolvimento dos países. Repesco uma citação do escritor sueco Henning Mankel, entrevistado por mim em Maputo há quase três anos: "Quando cheguei aqui (em Maputo), fiquei fora do teatro ver as pessoas a passarem e quase ninguém tinha sapatos. Agora aqui todas as pessoas têm sapatos, dois, três, quatro pares de sapatos... Claramente estou a ver um grande desenvolvimento. Mas a coisa mais importante é que há paz que esta cá para ficar."
Teoricamente a colonização acabou, mas os símbolos permanecem intactos, com a mesma capacidade destrutiva e separatista.
Mas há contextos em quem o sapato pode representar o fim da dignidade humana. Por exemplo, os milhares de sapatos expostos no museu que outrora foi o campo de concentração de Auschwitz na Polónia, fez-me perceber de forma angustiante e quase real o sofrimento dos prisioneiros. Nem o conjunto de malas, ou de roupas é tão expressivo quanto o sapato. Igual situação se aplica ao fim de uma manifestação violenta, por exemplo. Um campo de batalha decorado com sapatos de forma aleatória pode indicar o nível de violência ou o desespero das pessoas.
Nalguns lugares da Europa o sapato ganha um significado sui generis actualmente. Dá gosto a alguns jovens andar de sapatos sujos, quase nojentos, e rasgados. Quase não se olha duas vezes para eles. Claro que é uma marca de rebeldia e uma forma de marcar a diferença. Mas entendo isso como um escangalhar, sem consciência e sem intenção, de um separador de classes. Ou seja, arrisco mesmo a ousar pensar que essa atitude irreverente dos jovens é o indicio do inicio do homicídio do elemento que estratifica o Homem...
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