Os livros do escritor moçambicano Mia Couto retratam a realidade moçambicana, embora de forma ficcionada. Mas quisemos ouvir do escritor a sua opinião sobre Moçambique nas diversas esferas, deixando de lado a ficcão.
Nádia Issufo: O que pensa da desigualdade em Moçambique e a forma como são tratados os megaprojetos no país?
Mia Couto (MC): Defendo que é preciso repensar a relação com os grandes projetos. É obvio que na altura em que o governo começou a atrair os grandes projetos tinha de criar condições muito especiais. Moçambique tinha acabado de sair da guerra e estava num contexto regional instável. Portanto, era importante que os investidores tivessem confiança. Mas alguns já estão cá há vários anos e da riqueza que exploram fica muito pouco para o país, e alguns desses recursos são findáveis.
Além de que é injusto que haja facilidades para estes, enquanto os pequenos e médios empresários não têm. Estes últimos têm de pagar taxas, enquanto os outros estão isentos. E economistas já nos mostraram que bastava que eles pagassem as contribuições fiscais para que Moçambique estivesse noutra situação.
Desigualdade é consequência do modelo que criamos, isso não é particular de Moçambique. Se formos aos países emergentes veremos que há profundas desigualdades. O mundo que visito, com a exceção de alguns países do norte da Europa, são realidades muito chocantes. O retrato que eles criaram de si próprios, como se todos vivessem como uma elite, não é verdade.
NI: As manifestações de setembro de 2010 foram as mais violentas desde a independência de Moçambique. Acha que este acontecimento provocou alguma mudança na relação entre o governo e a população?
MC: O susto devia ter sido mais forte. A elite moçambicana não reagiu da mesma maneira, houve uma parte dela que pensou. Eu vejo dirigentes a viajar em primeira classe, provocando gastos supérfluos e pedindo aos outros que façam sacrifícios quando eles não fazem nenhum.
E quando houve uma primeira reação a manifestação ela foi negativa, foi de recusa da realidade. E no segundo momento, em que o governo aceita, ele inclui algumas propostas que para mim foi um sinal de que houve uma revisão dessa atitude no que se refere aos gastos supérfluos da coisa pública.
Mas acho que isso foi sol de pouca dura, a tentação dos políticos é ver nos cargos que ocupam uma espécie de oportunidade de enriquecerem rápido. Era preciso uma pressão contínua dos partidos políticos, da sociedade civil, da opinião pública.
No fundo esta elite não é diferente das outras, elas em todo o mundo tem os mesmo tiques, defeitos e gostam dos mesmos luxos. Nos outros países existe provavelmente controle social, o peso da opinião pública, o peso da dinâmica política. Aqui isso ainda não é forte e por isso esta elite se sente a vontade para fazer o que quiser.
NI: A pressão dos doadores internacionais e da sociedade civil para maior transparência, boa governação e democracia aumenta. Já há efeitos dessa pressão em Moçambique?
MC: A pressão dos doadores é quase sempre ditada quase sempre por razões que são quase sempre de interesses próprios. Não estão a defender grandes valores morais. Pressionaram muito Angola e o país transformou-se numa nação poderosa com grandes capacidades de exportação de petróleo e os doadores já não pressiona muito.
A Guiné Equatorial era um exemplo típico de uma ditadura inaceitável. Os chamados doadores, eu não gosto desta expressão, porque ninguém dá nada a ninguém, mas chamemos assim, tinham uma campanha sistemática de pressionar para que a ditadura no país que fosse resolvida. Depois encontrou-se petróleo no país e ninguém mais incomoda o presidente.
NI: Falou da Guiné Equatorial, este país pretende entrar para a CPLP. Qual é a sua opinião sobre isso?
MC: Sou contra. Acho que a CPLP, Comunidade de Países de Língua Oficial Portuguesa, podia ser a força que tinha, em termos de capacidade moral. Ela perde isso quando autoriza a si próprio a ter na família alguém que manche a sua idoneidade.
Porque hoje é assim, só se pode fazer política quando se tiver moral. Se a CPLP quer em nome de uma maior expressão numérica trocar isso por uma ausência de princípios morais, eu que não sou adepto de uma coisa que nem sei exatamente o que é, acabarei por me afastar cada vez mais.
DW África: Como moçambicano o que gostaria de ver mudado no seu país?
MC: Gostaria que a capacidade de crítica fosse mais visível, principalmente dos jovens urbanos, que eles fossem capazes de criar soluções de alternativas.
Acho que não sou ingênuo de pensar que a democracia é uma espécie de panaceia que resolve tudo, mas o jogo democrático, o confronto de idéias é uma coisa que falta muito em Moçambique.
Qualquer força política ou outra voz que surja com idéias novas que ponham em causa este status quo é fortemente atacada. E de repente já se estão a discutir pessoas e não idéias, portanto, há uma pobreza do ponto de vista das alternativas que estão a ser apresentadas.
E isso preocupa-me bastante porque há uma certa riqueza do ponto de vista da democracia, as pessoas podem falar, mas aceita-se que as pessoas digam coisas até realmente dizerem qualquer coisa. Quando se disser essa qualquer coisa, então ai há pouca tolerância e aceitação para perceber que ai é que está a nossa grande riqueza.
NI: O Mia já foi jornalista, qual é a sua opinião sobre a imprensa moçambicana?
MC: De uma maneira geral depois da morte de Carlos Cardoso o jornalismo de investigação quase sempre se confunde com o jornalismo que toca nos grandes escândalos, mas não é isso. Não vejo um jornalismo de pesquisa aqui.
O jornalismo de independência que se faz é de preguiça, que vive muito da opinião de fulano que acha que sabe, mas ninguém percebe porque ele tem de achar alguma coisa. Muitas vezes os artigos podiam ser feitos por leitores, por um tipo que por acaso trabalha num jornal. Também não há um ambiente que favoreça, não estou a pensar que os jornalistas são preguiçosos, não é isso.
NI: O Brasil é obviamente a potência da CPLP. Até que ponto há o risco de outros países obedecerem a batuta deste país?
MC: Estes países não podem arvorar-se apenas como vítimas. Nós não temos que chorar, mas sim ter a nossa agenda bem clara, a defesa dos interesses nacionais bem definida. E se assim for, não temo de ter uma posição muito ambígua.
Por exemplo, em relação à CPLP, a posição de Moçambique é muito ambígua. Em relação ao Acordo Ortográfico, achamos que tem a ver com os outros. Sobretudo quando se trata da língua portuguesa, nem damos importância. Por um lado somos de língua portuguesa, por outro lado, quando nos convém já não somos. Quando é para buscar dinheiro já somos da primeira linha. O facto de haver uma potência como o Brasil não pode ser vista a partida como algo negativo, pode ser positivo. Podemos até ter partido disso ao nível internacional.
NI: O Mia é também biólogo. Vamos também falar um pouco sobre o meio ambiente. O Homem tem sido responsabilizado pelas mudanças climáticas. Serão as mudanças apenas alvo de ações humanas, ou farão parte também de um processo normal? Por exemplo, o desaparecimento de espécies e o surgimento de outras...
MC: Acho que estamos num processo de fabricação do medo quando se fala no clima. É sempre por via da ameaça e isso impede que tenhamos uma visão serena e tranquila sobre o assunto.
A comunidade científica está profundamente dividida sobre o assunto e nós não estamos dispostos a ouvir outras opiniões. E o jornalismo também tem uma parcela de culpa nisso: simplifica os assuntos, só interessa o que vende.
Há um bombardeamento sistemático do que é negativo, que reduz a esperança. Somos uma espécie de soldados que não pensa, que aceita, que faz rentabilizar o medo porque o medo acaba por ser muito conveniente para manter o sistema.
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